“O poder de investigar
Em duas frentes distintas, o Ministério Público corre o risco de ver o seu poder de conduzir investigações criminais cerceado.
As iniciativas, no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF), decorrem da falta de clareza do texto constitucional sobre as atribuições do órgão, até hoje não sanada.
A Constituição define que compete às polícias civis - que são entidades estaduais - e à Polícia Federal a apuração de infrações penais. Ao mesmo tempo, determina que é tarefa do Ministério Público "promover" ações penais públicas, atribuição que poderia incluir, segundo alguns intérpretes, a realização direta de investigações.
A Carta não proíbe promotores e procuradores de realizarem inquéritos criminais, mas também não lhes atribui essa competência”
O verdadeiro problema aqui é raramente discutido: por que o Ministério Público conduz tais investigações? Se entendermos por que ele investiga, entendemos o que acontecerá se ele não mais investigar e as alternativas.
O art. 129, §4º de nossa Constituição, diz que “aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no art. 93”. Essa frase enigmática estabelece a isonomia entre o Ministério Público e a magistratura, ou seja, dá aos membros do Ministério Público direitos similares aos magistrados. E o art. 127, §1º, diz que “são princípios institucionais do Ministério Público (…) a independência funcional”. Isso significa que o Ministério Público, embora seja um órgão do Executivo, funciona de forma independente da vontade do chefe do Executivo (o que se chama normalmente de 'órgão apêndice'). Em outras palavras, os membros do Ministério Público não precisam pedir permissão do presidente da República ou do governador para processar ninguém. A consequência disso é que muitos processos encabeçados pelo Ministério Público são movidos contra o próprio governo ou órgãos estatais.
Mas o art. 144, que é o que trata das polícias, não estende esses direitos às polícias.
As polícias também são instituições do Executivo, mas elas não têm autonomia funcional e seus membros (os delegados, no caso das civis e federal, que são as que conduzem inquéritos) não têm as mesmas proteções e direitos que um juiz ou promotor tem em sua carreira.
Por isso as polícias estão muito mais sujeitas às influências e pressões dos políticos e demais servidores públicos do que os membros do Ministério Público, já estão muito mais vulneráveis pessoal e institucionalmente. Se um delegado inicia uma investigação que desagrada o governador ou o ministro da justiça, ele pode ser retirado da investigação, pode ser colocado na ‘geladeira’ ou ‘corredor’ (uma espécie de limbo no qual não faz nada e sua carreira fica em suspenso), pode ser enviado para uma comarca distante, pode perder o orçamento necessário para a manutenção da delegacia etc. Por isso, na prática, um delegado tem muito mais temor de conduzir uma investigação controversa do que um promotor ou procurador da República, que estão muito melhor protegidos. Como alguém precisava investigar casos controversos de forma adequada, a instituição mais próxima - o Ministério Público - passou a fazê-lo.
Mas existe uma razão pela qual – no Brasil – as polícias não têm autonomia funcional: elas, junto com as forças armada, são o instrumento de força do Estado.
Por causa de sua autonomia, o Ministério Público pode agir contra a vontade do presidente da República e até processá-lo. Mas se o Exército tem o mesmo poder, porque ele é o instrumento de força do Estado, ele poderia depor o presidente. E isso se chama golpe de Estado.
Por analogia, e porque temos um passado no qual Forças Armadas e policiais agiram contra a sociedade e o Estado, e não em sua proteção - a Constituição não deu autonomia às polícias (aliás, é por essa mesma razão que policiais não têm direito de greve.).
Mas isso não quer dizer que essa seja a única solução. Em outros países, por exemplo, a polícia tem independência funcional, mas está sujeita à fiscalização de comissões independentes (que não incluem policiais), que têm o poder de punir (inclusive demitir) policiais. Uma solução parecida com a que adotamos no Brasil para controlar o Ministério Público através do Conselho Nacional do Ministério Público.
Mas isso não explica por que as polícias não têm isonomia, o que já serviria para proteger, ao menos em parte, os policiais. Aqui, há duas razões: primeiro, de ordem econômica. O custo financeiro de conceder tal isonomia é alto. Segundo, vontade política: interessa a alguns políticos manterem a capacidade de influenciar a carreira dos policiais para, assim, obterem favores deles.